Tecendo a teia com a Física Quântica
Tecendo a teia com a Física Quântica
Orientações expressas em documentos educacionais oficiais, divulgações científicas desenvolvidas por centros internacionais e nacionais de pesquisas e o expressivo crescimento da área de pesquisa curricular têm promovido uma visão quase consensual da necessidade da inserção da física quântica no currículo da escola média.
Há, no entanto, diferentes concepções de como proceder com tal inserção. Pelos estreitos vínculos que a física quântica tem com os conteúdos contemporâneos das ciências naturais, bem como pela sua íntima relação com as tecnologias que interligam os diversos campos de conhecimento, a pesquisa aqui apresentada aposta em uma inserção curricular mais abrangente da física quântica que esteja em consonância com seu papel de componente destacado na tecitura da teia conceitual, com sua fenomenologia, teorias e tecnologias constituindo-se como elos de ligação entre (a) distintos campos da física, (b) da física com o conjunto das ciências da natureza, (c) destas com outras áreas de conhecimento humano ou mesmo (d) como elementos indissociáveis da vivência moderna.
jQuery UI Accordion - No auto height O cotidiano quântico e complexo
O conjunto de conhecimentos que conformam a física pode ser representado por uma combinação de mapa conceitual e roteiro histórico, uma espécie de arquitetura da física:
O conhecimento do mundo material [...] tem caráter histórico e se desenvolve por meio de contradições. Novas visões hegemônicas incorporam elementos das visões superadas, novas ideias são frequentemente construídas com formas antigas, assim como uma nova cultura não é independente das suas precedentes. Isso se reflete na estrutura do conhecimento, atribuindo-lhe uma curiosa arquitetura, que lembra templos que passaram por sucessivas civilizações, onde os pavimentos erguidos pelos conquistadores usam blocos tirados da demolição daqueles construídos pelos conquistados sobre as mesmas fundações (Menezes, 2005, p. 29).
São várias as leituras que podem ser elaboradas dessa arquitetura. De baixo para cima, faz-se um percurso histórico, do mais antigo ao mais novo. Da esquerda para a direita, um percurso energético, das altas às baixas energias. Não por acaso, esse percurso energético é também o percurso do simples ao complexo. Da unificação inicial precedente ao estouro da bola de fogo, o Universo se resfriou e se tornou mais e mais complexo até originar a vida tal qual a conhecemos.
Traçados simultaneamente, estes dois percursos nos levam (não exatamente por uma linha diagonal sem desvios laterais ou verticais) da física clássica à física quântica. Do todo, cartesianamente decomponível em partes, à totalidade quântica, em que um único próton ou elétron a mais ou a menos faz toda a diferença, ao mesmo tempo em que esse próton ou elétron é exatamente sempre o mesmo, indistinguível, seja lá onde esteja:
Os objetos clássicos, martelos, ou penhascos, podem ser distinguidos de seus semelhantes e guardam marcas de sua história. Em contrapartida, seus processos são relativamente controláveis, como a trajetória de um martelo ou a queda de um penhasco. Talvez exatamente isso é que permite a infinita e contínua variedade clássica com que nos habituamos em nosso cotidiano no qual os pães, por exemplo, podem ter diferentes tamanhos, texturas e sabores, em oposição aos prótons, todos tão tediosamente idênticos.
Pães são feitos de coisas vivas, como o fermento e o trigo, mais complicados, por exemplo, do que os cristais de sal, também presentes no pão. O fermento e o trigo, assim como o sal, são feitos de átomos quânticos, mas sendo vivos, são ordens emergentes de processos complexos adaptativos, através dos quais a precisa ordem quântica se traduz na imprecisa e criativa variedade clássica. Cada ser vivo se funda na ordem infinitesimal da mensagem físico-química de seu DNA, assim como o cristal, herda sua transparência e cor da ordem quântica de suas células moleculares, mas entre a vida e o cristal, há um abismo de complexidade (Menezes, 2005, p.247).
A física quântica perpassa, assim, o campo da física, sendo ela “em si” marcada pela complexidade, sendo mais um indicativo da necessidade de maior atenção para com esse tema na sequência da presente pesquisa. No entanto, mesmo que ainda de forma incipiente, essa discussão já sinaliza que o contexto contemporâneo está impregnado por aparelhos, utensílios e materiais sintonizados com a região superior direita do quadro acima apresentado, corroborando a análise a seguir acerca da tecitura de teias conceituais por meio da física quântica.
A interligação de campos da física
A opacidade à luz visível e a condutância elétrica de um metal, contrapondo-se ao comportamento transparente e isolante do vidro, são fenômenos associados à extensão dos intervalos entre as bandas de valência e condução do material, pequena no caso do metal e maior no caso do vidro. Quantidade de movimento e comprimento de onda são conceitos intimamente relacionados pelo comportamento dual da matéria, haja vista o fenômeno da difração de elétrons e o efeito Compton. Cor e temperatura são características da matéria associadas pela emissão de fótons por elétrons que transitam desde níveis quânticos mais energéticos para aqueles de menor energia. A cor dos semicondutores é determinada pelo gap energético entre a banda de valência e a banda de condução.
Características ópticas, elétricas, mecânicas, ondulatórias e térmicas dos materiais, são, assim, conectadas umas às outras por meio da intimidade quântica da matéria. Quando se mergulha na estrutura da matéria, há pouco espaço para a identificação de fenômenos que genuinamente pertençam a este ou aquele campo da física. A razão, claro, está em que a FQ ampliou a já incrível unificação teórica do eletromagnetismo formulada por Maxwell no final do século XIX.
No quadro abaixo se representa um mapeamento de conexões potencializadas pela FQ entre os diferentes campos conceituais da física. Além dos exemplos há pouco citados, as seguintes associações são apresentadas: Eletromagnetismo e Física Térmica, a partir da propriedade de alguns materiais em se tornarem supercondutores a partir de seu resfriamento; Óptica e Ondulatória, devido aos espectros ópticos dos elementos químicos formados pela interferência das radiações difratadas por múltiplas fendas; Eletromagnetismo e Mecânica, em consequência da conservação do momento e da carga elétrica na criação e aniquilação de pares de partículas e anti-partículas; Física Térmica e Mecânica, em razão da interpretação quântica da entropia e do desenvolvimento da mecânica estatística quântica de Bose-Einstein, aplicada aos fótons e outros bósons e Fermi-Dirac, aplicada aos elétrons e outros férmions; Física Térmica e Ondulatória, motivada pela interpretação quântica da radiação do corpo negro e do calor específico dos materiais a partir da caracterização de átomos como osciladores harmônicos.
A física quântica na interligação entre as ciências
As conexões estabelecidas pela FQ perpassam o campo conceitual da física e se estendem pelo conjunto das Ciências da Natureza. O estudo da composição química de uma estrela, identificada pela luz por ela emitida, assim como o estudo da síntese estelar dos elementos químicos estabelecem, por exemplo, um elo entre a física, a química e a astronomia. Conexão ainda mais abrangente é promovida pela análise das interações entre luz e matéria na atmosfera terrestre e sua extrapolação para outros astros. A ação dos filtros naturais terrestres e de outros astros sobre os raios infravermelhos emergentes e ultravioletas incidentes, bem como sobre outras radiações ionizantes e partículas cósmicas é assunto que interliga física, química, biologia e astronomia.
No LNLS, em Campinas, assim como em outros aceleradores de partículas espalhados pelo mundo, físicos, químicos e biólogos cooperam entre si no estudo da estrutura de proteínas e demais demandas inseridas no contexto da biologia molecular, campo de conhecimento que se desenvolveu a partir da descoberta da estrutura do DNA, protagonizada em 1953 por Watson e Crick a partir da técnica da difração de raios-X. E se o assunto é vida, é claro que a investigação das características físicas e químicas do carbono é também exemplo do papel da física quântica na articulação dos conhecimentos internos às Ciências da Natureza.
Também relacionada a questões vitais, a incidência da luz solar na superfície de plantas, ativando a fotossíntese, e na pele humana, provocando seu bronzeamento ou queimadura, são fenômenos vinculados ao estudo da estrutura da matéria.
O quadro abaixo representa um mapeamento das conexões acima identificadas, além de também apresentar conexões mais estreitas entre a física e a química, tais como a questão da estrutura eletrônica dos elementos químicos, das sínteses e descobertas de novos materiais e da radioatividade e outros processos nucleares.
Vale observar que o mapeamento aqui identificado é apenas um exemplo de diversas possibilidades a ele alternativas. A abrangência dos assuntos envolvidos com a biologia molecular, por exemplo, justificaria identificá-la como um quinto campo de conhecimento, juntamente à física, à química e à astronomia. Similarmente, a astrobiologia e astroquímica poderiam ser também explicitadas neste mapeamento.
A interligação das ciências com outras áreas
A partir das tecnologias essencialmente associadas à FQ é também possível abranger outras áreas de estudo nesta busca por uma visão em rede do conhecimento. Exemplo disso são as conexões potencializadas pelas tecnologias que se utilizam de decaimentos radiativos. Com particular interesse à antropologia e arqueologia, o método de datação por carbono 14 é utilizado na identificação da idade de múmias e antigos artefatos, ao passo que isótopos de meia vida mais longa são utilizados na paleontologia, geocronologia e geofísica. Datações radiativas são também eficazes em muitos casos em que se necessita comprovar a autenticidade de quadros e esculturas artísticas. Na medicina são diversas as técnicas diagnósticas e terapêuticas baseadas na monitoração de substâncias radiativas injetadas no paciente. A ruptura da estrutura celular de bactérias em alimentos expostos a decaimentos radiativos vem sendo crescentemente explorada na engenharia de alimentos como técnica de melhor conservá-los. Na engenharia e na indústria em geral são inúmeros o uso de elementos radiativos, tais como traçadores radiativos na identificação de vazamentos na indústria química, medições da atenuação na penetração das emissões radiativas como controle de qualidade na determinação de espessuras na indústria de papel e esterilização não apenas de alimentos, mas também de materiais cirúrgicos, remédios e materiais de valor histórico.
As radiações eletromagnéticas emitidas por processos não nucleares também podem ser pensadas como um nó de redes conceituais e materiais tecidas pela física quântica. Radiografia, termografia, terapias com exposição a raios infravermelhos e ultravioletas, tomografia e ressonância nuclear magnética são alguns exemplos do amplo uso das radiações na medicina. Além de identificar anomalias em tecidos humanos, os raios-X podem ser úteis em diversas outras aplicações técnicas, como na comprovação da autenticidade de uma obra de arte, na identificação de porte de armas em aeroportos, na caracterização da coloração das penas de fósseis de aves extintas pela paleontologia e na percepção de fraturas em peças na indústria. Os raios ultravioletas também têm larga aplicação tecnológica para além da medicina, como na ativação de certos tipos de cola, na secagem de tintas e vernizes, na esterilização de alimentos e bebidas e no tratamento de água de piscina ou mesmo água potável.
De especial interesse é o caso das radiações eletromagnéticas emitidas como feixes laser. Após pouco mais de 50 anos de sua invenção, o laser tem uma presença tão significativa no conjunto dos campos de conhecimento que merece destaque especial no mapeamento aqui explorado. Alguns exemplos do uso do laser: cortes precisos em peças industriais, cirurgias de correção de defeitos de visão, precisão na mira de armamentos militares, shows de projeção, maior precisão em gravuras sobre joias, produção de holografias, desenvolvimento de pinças ópticas e, até especialmente, lasers modulados levando informações no interior de fibras ópticas.
A manipulação genética, inserida no contexto da biologia molecular e, portanto já identificada no item anterior como uma ponte entre as Ciências da Natureza, abrange também uma dimensão filosófica e ética, com as questões da técnica da clonagem e da produção de alimentos transgênicos sendo alvos de grande polêmica social. Polêmicas à parte, fato é que o cultivo mundial de transgênicos já atingiu 160 milhões de hectares em 2011 e a cada ano são anunciados diversos novos investimentos em pesquisas referentes a clonagens de embriões, células tronco e modificações genéticas de animais, um caminho que não parece ter volta e com influência cada vez maior na economia mundial, sendo, pois, um marco na história humana.
Como bem destacado pela destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki, há outros marcos históricos associados a tecnologias possibilitadas pelo desenvolvimento da FQ. A manipulação dos semicondutores e a consequente construção de transistores e chips, base de toda a microeletrônica, transformaram para sempre e de forma radical as técnicas de comunicação, inaugurando as práticas simultâneas a distância e as interações assíncronas e provocando uma estruturação da sociedade baseada na constituição de redes globais. A ascensão do Vale do Sílicio, nos Estados Unidos, bem como de toda a indústria de hardwares e softwares na economia mundial, são também destacados aspectos da história humana.
Curioso é que apesar dessa quase onipresença da FQ nas diversas áreas de conhecimento, fundamentalmente possibilitada pelos elementos de tecnologia a ela direta ou indiretamente associados, há enorme margem para questões filosóficas relacionadas à sua própria interpretação, fonte de alimentação para “misticismos quânticos” e imaginação de novos super-heróis, como o enigmático Dr. Manhattan de Watchmen.
Abaixo, o mapeamento representativo das conexões acima indicadas.
Física quântica e vivência moderna
Além de tecer uma rede entre as mais diversas áreas de conhecimento, a FQ, através da microeletrônica, está impregnada na vivência da sociedade contemporânea, sendo, por exemplo, cada vez mais difícil identificar um aparelho que não faça uso de algum circuito integrado. O texto apresentado no fascículo Toda a Física: hoje e através de sua história, descrevendo o início de um fictício dia de trabalho de uma secretária de telemarketing é mostra disso, com as relações nele indicadas podendo ser realçadas pelo seguinte esquema: