Virtual e Real (Canato Jr, O. Excerto da tese de doutorado)

Virtual e real

Virtual e real

I - Virtualização, Ciberespaço e Cibercultura

Nesse contexto ganha importância a compreensão do termo virtual em oposição à presença física imediata e não em oposição ao real. Uma operação de compra ou venda de ações por meio de um ambiente virtual é tão real quanto essa mesma operação feita presencialmente por um corretor. Como bem expressa Demo (2002), a noção de virtualidade nem mesmo está restrita ao advento das modernas tecnologias, com um quadro que retrata o rosto de uma pessoa podendo ser entendido como uma presença virtual tanto dessa pessoa como do próprio pintor:

[...] Existe, sem sombra de dúvida, presença virtual, para além da base física. Não foi inventada agora com o computador, apenas tornou-se mais ostensiva e, de certa forma, crescentemente avassaladora. Nas gravuras em pedra encontradas hoje de povos “primitivos”, temos sua presença virtual. Na carta que a mãe guarda de seu filho que mora do outro lado da Terra, temos, sob o signo da saudade, presença virtual. Na fé da comunidade religiosa, Deus está presente de modo virtual e talvez mais forte que o modo físico. Com o ciberespaço, esse tipo de presença invade nossas vidas de modo crescente e irreversível, não se podendo mais igualar virtual com fictício, fantasmagórico, simulado, irreal. O contrário de virtual é físico, não irreal. (DEMO, 2002, p.34).

 

A confusão em torno da associação entre os conceitos de virtualidade e irrealidade é também analisada por Lévy (2009, p.47) que aponta que na “acepção filosófica, é virtual aquilo que existe em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização”. Ou ainda, é virtual “toda entidade ‘desterritorializada’, capaz de gerar diversas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular”. Uma árvore, por exemplo, está virtualmente presente na semente que a engendrará. Assim também, diversos contextos estão virtualmente presentes no vocábulo “árvore” que, enquanto não pronunciado em algum lugar e momento, tem “em si” existência virtual.

Em vista dessas definições, Lévy (2009) aponta dois motivos pelo qual a digitalização da informação pode ser qualificada como virtual: (a) embora fisicamente localizada em determinado suporte (DVD, pen drive, disco rígido), a informação está virtualmente presente em todos os nós da rede que necessitarem acessá-la; (b) sendo ilegíveis ao ser humano (combinações dos dígitos 0 e 1), os códigos de computador atualizam-se no tempo e no espaço como textos legíveis, imagens visíveis e sons audíveis.

Lévy (2009) analisa que há também outros movimentos de virtualização que hoje se manifestam em virtude do desenvolvimento das tecnologias da informática. A comunicação, por exemplo, absolutamente presencial nas antigas sociedades orais, tem seu caminho rumo à virtualização potencializado por sua digitalização. Da comunicação recíproca, assíncrona e a distância, já alavancada pelo correio ou pela escrita em geral, permite-se agora que “membros de um grupo humano (que podem ser tantos quanto se quiser) se coordenem, cooperarem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real, apesar da distribuição geográfica e da diferença de horários” (LÉVY, 2009, p. 49).

Tal característica da comunicação contemporânea conduz, avalia Lévy (2009, p. 49), à virtualização das organizações que “tornam-se cada vez menos dependentes de lugares determinados, de horários de trabalhos fixos e de planejamentos a longo prazo”, bem como acentuam o caráter virtual que as transações econômicas e financeiras possuem desde a invenção da moeda e dos bancos.

É precisamente o caráter virtual da informação que Lévy (2009) identifica como a marca distintiva do ciberespaço, termo por ele assim definido:

Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. Insisto na codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me a marca distintiva do ciberespaço. (LÉVY, 2009, p. 92-93).

 Os extensos e profundos reflexos culturais do advento e crescimento do ciberespaço motivam o uso do termo cibercultura, contextualizado por Lévy (2009) como uma terceira etapa da história das sociedades humanas marcada pela potencialização da virtualidade e universalidade inaugurada pelas sociedades baseadas na escrita, combinada com o relativo retorno à contextualização e singularidade das sociedades orais. Exemplo disso são os experimentos realizados nos modernos aceleradores de partículas:

É impressionante constatar que algumas experiências científicas realizadas nos grandes aceleradores de partículas mobilizam tantos recursos, são tão complexas e difíceis de interpretar que praticamente só ocorrem uma vez. Cada experiência é quase singular. Isso parece contra o ideal da reprodutibilidade da ciência clássica. No entanto, essas experiências ainda são universais, mas de outra forma que não a possibilidade de reprodução. Delas participam, de fato, grande número de cientistas de diversos países, que formam uma espécie de microcosmo ou de projeção da comunidade internacional. Mas, sobretudo, o contato direto com a experiência praticamente desapareceu em benefício da produção maciça de dados numéricos. Ora, esses dados podem ser consultados e tratados em grande número de laboratórios dispersos graças aos instrumentos de comunicação e de tratamento do ciberespaço. Assim, o conjunto da comunidade científica pode participar dessas experiências muito particulares, que são também eventos. A universalidade repousa, então, na interconexão em tempo real da comunidade científica, sua participação cooperativa mundial nos eventos que lhe dizem respeito em vez da depreciação do evento singular que caracterizava a antiga universalidade das ciências exatas. (LÉVY, 2009, p. 164-165).