Virtual e Real (Canato Jr, O. Excerto da tese de doutorado)

Virtual e real

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III - Ambientes Virtuais de Ensino e Aprendizagem

A proliferação de cursos a distância é fenômeno também contextualizado no desenvolvimento da cibercultura. No item 2.3 deste texto já foi assinalada a incrível velocidade com que na sociedade contemporânea se renovam os artigos que compõe nosso mundo material (ver página 33). Reflexo disso no mundo do trabalho é que cada vez mais rapidamente a formação inicial cede terreno frente à formação contínua e alternativa. Contínua seja pelas permanentes inovações inerentes a cada profissão, seja pela alternância de profissões que hoje caracteriza uma “carreira profissional”. Alternativa porque cursos técnicos de curta duração presenciais ou a distância, muitas vezes oferecidos pelas próprias empresas ou por seus consórcios, soam não raramente mais acessíveis e proveitosos do que cursos universitários presenciais de longa duração.

O ensino presencial também sofre influências de todo esse processo, sendo cada vez mais comum em seu seio o uso de técnicas típicas do ensino a distância, tal qual o desenvolvimento de ambientes virtuais de ensino e aprendizagem:

Dois ambientes de aprendizagem que historicamente se desenvolveram de maneira separada, a tradicional sala de aula presencial e o moderno ambiente virtual de aprendizagem, vêm se descobrindo mutuamente complementares. O resultado desse encontro são cursos híbridos que procuram aproveitar o que há de vantajoso em cada modalidade, considerando contexto, custo, adequação pedagógica, objetivos educacionais e perfil dos alunos. (TORI, 2009, p. 121).

 

Dentre os diversos softwares disponíveis para a gestão de ambientes virtuais de ensino e aprendizagem, destaca-se o Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment (Moodle). Gratuito e de relativa facilidade de instalação, administração e uso, este programa tem encontrado bom trânsito ao redor do mundo[2]. É nesse quadro que se insere o fisicaemrede.com, ambiente Moodle por mim desenvolvido em meio à problemática gerada pela suspensão de aulas nas redes de educação básica em agosto de 2009 devido à pandemia da gripe H1N1.

Mediante a autorização oficial de se realizar a distância parte da reposição de aulas, a ideia foi desenvolver uma ferramenta mais efetiva para o aprendizado do que o registro da simples troca de mensagens eletrônicas com o aluno, procedimento então sugerido pela coordenação pedagógica. Acessando com nome de usuário e senha o fisicaemrede.com, meus alunos da EE Alberto Levy liam breves orientações e textos e realizavam as tarefas compostas basicamente de cruzadas e outros passatempos interativos sobre transformações energéticas. De minha parte, ao acessar o ambiente podia verificar não somente as notas obtidas pelos alunos, conforme correção automática feita pelo sistema, como também extrair registros de suas presenças virtuais, incluindo-se, se desejada, até mesmo a identificação dos pontos de acesso[3] por eles utilizados.

Em vista da contínua utilização que venho fazendo da ferramenta, é pertinente apresentar breve descrição do Hot Potatoes, programa que permite a resolução online de palavras cruzadas e outros passatempos que podem ser configurados com o recurso do fornecimento de pistas para sua resolução. Cliques sucessivos na pista de um determinado termo presente em uma cruzada, por exemplo, leva à sua revelação letra a letra. O uso de tal recurso acarreta, no entanto, em decréscimo na valoração da atividade, de forma que se o aluno resolver “trapacear” e descobrir por meio destas pistas todas as letras de todos os termos presentes no passatempo, o programa lhe dará ao final da atividade uma primeira mensagem de felicitação quanto ao integral acerto, seguida de outra informando a atribuição da nota zero. Claro que a questão de fundo aqui não é a eficácia do programa quanto à inibição de eventuais fraudes na conquista de uma nota, mesmo porque sempre se podem inventar novas maneiras de burlar um sistema. O que é fundamental é a possibilidade de potencialização do aprendizado mediante a interatividade permitida:

[...] quanto mais ativamente uma pessoa participar da aquisição de um conhecimento, mais ela irá integrar e reter aquilo que aprender. Ora, a multimídia, interativa, graças à dimensão reticular, não linear, favorece uma atitude exploratória, ou mesmo lúdica, face ao material a ser assimilado. É, portanto, um instrumento bem adaptado a uma pedagogia ativa. (LÉVY, 2003, p. 40).

 

Mas é na integração do Hot Potatoes ao Moodle que a ferramenta revela toda sua versatilidade, com o professor podendo estipular o número de tentativas permitidas para cada passatempo, bem como se a nota final será composta pela nota média das diversas tentativas ou se somente será validada a nota da última tentativa ou, alternativamente, apenas a maior nota dentre todas as tentativas. Como todas as atividades Moodle, é também possível estipular o período de disponibilidade de cada passatempo, de forma que cliques tardios no ícone do passatempo resultarão em mensagens automáticas informando ao usuário algo como “sinto muito, mas esta atividade foi encerrada em tal data”. Se desejado, pode-se ainda vincular diversos passatempos em sequência, de forma a simular ou mesmo validar uma avaliação com diversas questões.

A título de exemplo e sem contar com as interatividades acima mencionadas, apresenta-se na figura 48 uma cruzada sobre termos característicos do estudo da estrutura da matéria normalmente por mim utilizada como avaliação diagnóstica junto a licenciandos de física do IFSP-SP[4].

 

Da única sala virtual disponível ao conjunto de meus alunos do EE Alberto Levy, o fisicaemrede.com tem sido amplamente e continuamente reestruturado a partir de meu ingresso, em 2010, como professor na Licenciatura em Física do IFSP-SP, passando a contar com um espaço de trabalho para cada disciplina por mim ministrada, além de áreas destinadas à livre realização de passatempos e de aprendizagem quanto à sua elaboração, à aprendizagem sobre Moodle em geral e à exposição do desenvolvimento da própria investigação vinculada ao doutoramento.  Vale obervar que com exceção de uma área de testes, todo o ambiente é aberto a visitações, sem necessidade de registro de usuário. Há, sim, recursos e atividades que somente são visualizados e praticados a partir de tal registro, mas dentro da ideia central de permitir a visualização global do ambiente e de facilitar suas conexões internas.

Outras características do fisicaemrede.com serão realçadas no próximo capítulo. Por ora, a descrição aqui feita deste ambiente, somada à anterior apresentação do trabalho com os simuladores do átomo de Bohr, já permite suficiente clareza no rumo tomado pelo pesquisador quanto ao uso das tecnologias da comunicação e informação no ensino de física e no motivo pelo qual o assunto é abordado nesta tese. Não se trata de procedimento autoavaliativo da qualidade do material produzido, das aulas ministradas ou da própria pesquisa. Trata-se, sim, de, resgatando aquele alerta quanto ao cuidado de não vislumbrar vida própria nestas tecnologias (ver p. 97), posicionar-se com clareza a favor de seu uso em qualquer nível e modalidade de ensino de forma a aproveitar ao máximo seu potencial na perspectiva da expansão da rede de significados do estudante. Ínfima contribuição didático-pedagógica pode ser associada ao uso de ambientes virtuais como meros repositórios de arquivos, de simulações como simples complementos às exposições teóricas do professor ou de questionários Hot Potatoes que se assemelhem a testes de vestibulares.

Nesse contexto, resgato o posicionamento de Demo (2012) a respeito da necessidade em apostar no desenvolvimento de ambientes virtuais que promovam a autoria docente e discente, sendo retrógradas as atitudes de ignorar ou depreciar esta inovação educacional:

A essas alturas, o que é inovação educacional se torna algo óbvio: iniciativas que aprimoram a oportunidade de aprender bem, tais como [...] os ambientes virtuais de aprendizagem (AVAs) [que] só são importantes se os estudantes aprenderem bem com eles. Estão, porém, avançando sobre as instituições de educação de maneira crescente e compulsória. Assim, inovação educacional, hoje, implica AVAs também, tornando-se atitude retrógrada simplesmente contrapor-se a eles, depreciá-los, ignorá-los, como faz o Plano Nacional de Educação (PNE), quando, falando da formação de professores, admite apenas “cursos presenciais”. Primeiro, usa-se uma linguagem obsoleta que, no fundo, se rende ao instrucionismo da aula, como se não fosse possível aprender fora da sala de aula. Quem estuda está presente, do que se conclui que a distinção não é entre curso presencial e não presencial, mas entre cursos com presença física e cursos com presença virtual, de preferência híbridos. [...] postular que o estudante só aprende frequentando aula é uma velharia infame que só as pedagogias do arco da velha pleiteiam. Todo pedagogo que não sabe lidar com AVAs está fora do mapa. (DEMO, 2012).

 

O mérito dos ambientes virtuais de ensino e aprendizagem[5] não é, portanto, substituir a sala de aula física ou ser dela mero anexo ou apêndice, mas abrir o horizonte para a invenção de práticas educacionais que sem o virtual dificilmente se imaginaria realizar. Nessa via, merece atenção as considerações de Franco e Lessa (2012) sobre as características a serem contempladas na construção de ambientes virtuais interativos:

(a) que a plataforma seja multifluxo;

(b) que existam na plataforma funcionalidades que ensejem a configuração de uma topologia mais distribuída do que centralizada, possibilitando a precipitação da nova fenomenologia da interação (ou, em outras palavras, que a plataforma de aprendizagem seja realmente uma plataforma de rede);

(c) que a experiência de uso implicada no design da plataforma parta do que a pessoa conectada à plataforma pode desejar fazer e não do que a plataforma pode oferecer; e

(d) que o design da plataforma contemple mecanismos e funcionalidades que compreendam a adesão e a participação, mas que consigam chegar à interação, permitindo a adaptação mútua, a imitação e a colaboração e ensejando a manifestação daqueles fenômenos capazes de gerar auto-organização [...] O ideal é que esses mecanismos e funcionalidades sejam baseados em um gradiente de interação do tipo: adesão -> adesão-participação -> participação -> participação-interação -> interação. (Franco, Lessa, 2012).

 

Com tais considerações, Franco e Lessa (2012) procuram responder ao que denominam por concepções e práticas mais acordes à estrutura e dinâmica da sociedade-em-rede que está emergindo ou – o que é a mesma coisa – à fenomenologia da interação social, posicionamento que pode ser entendido como imerso ao desenvolvimento das pesquisas sobre “aprendizagem em rede”, termo que apesar de contemplar diversas conotações, envolve quase sempre a ênfase nos contextos colaborativos e/ou cooperativos de aprendizagem potencializados pela conectividade fomentada pela tecnologia digital.



[2] De acordo com as estatísticas disposta na página oficial do programa, <https://moodle.org/stats/> (Acesso em 31 Mar. 2014), no momento da escrita deste texto, eram quase 70 mil os sites Moodle  até então registrados, mais de 67 milhões os usuários deles participantes e 235 os países a eles referentes, sendo o Brasil o terceiro país em termos de sites registrados.

[3] Por ponto de acesso me refiro ao Internet Protocol, ou IP, do dispositivo (computador, tablet, etc) conectado na internet.

[4] O acesso interativo ao passatempo pode ser apreciado no seguinte endereço eletrônico: <http://www.mdl19.fisicaemrede.com/mod/hotpot/view.php?id=325> (Acesso em 31. Mar. 2014).

[5] Vale aqui observação acerca de minha preferência pelo uso da expressão “ambiente virtual de ensino e aprendizagem” frente a “ambiente virtual de aprendizagem”, de uso mais popular. Apesar de concordar com as considerações de Demo e outros educadores quanto à necessidade em ter como centro a aprendizagem, combatendo-se o característico foco dado pelo instrucionismo ao ensino, este último não se tornou para nada desprezível ou dispensável, sempre tendo alguém que alimenta e estrutura, com suas convicções educacionais, o ambiente virtual e que, portanto, direta ou indiretamente, ensina.